Texto do Sermão proferido na Paróquia Martin Luther, pelos 70 anos da imigração Teuto-Russa. Porto Alegre, 06/ago/2000, pelo Pastor Alfredo Gutjahr
Texto revisado por Patrícia Gutjahr,
filha.
Não sabemos ao certo
as causas que levaram, em 1763, os alemães da região de Baden-Württemberg (sul
da Alemanha) a abandonarem a sua terra natal e emigrarem para as regiões
férteis das planícies do rio Volga e da região de Wollynien, na Rússia. Uns
alegam ter sido a procura por terra, motivada pela proposta irrecusável feita
por Katharina II, uma princesa alemã, que ocupava o trono da monarquia dos
Czares na Rússia. Outros afirmam que a causa tenha sido motivos religiosos. Os
luteranos queriam viver num país, no qual pudessem praticar livremente as suas
convicções religiosas.
Na época muitos
outros países necessitavam de imigrantes. Os Estados Unidos, o Canadá, a
Austrália, a Nova Zelândia e as Américas. Mas nenhum país fizera proposta
melhor do que Katharina II, que ocupou o trono durante 33 anos. Assim, 27.000
alemães, atendendo o seu chamado, emigraram para a Rússia, sem impedimento
algum de documento ou burocracia alfandegária que pudesse dificultar a sua
entrada. As facilidades não pararam por aí. Foi-lhes doado a terra como
propriedade; foi-lhes concedido isenção de impostos; foi-lhes oferecido auxílio
financeiro para custear o início das atividades; aos imigrantes e aos seus
descendentes foi concedida isenção do serviço militar. Além disso, foi-lhes assegurada
plena liberdade religiosa sendo permitido construir as suas igrejas e escolas;
também lhes foi garantido o direito inviolável de cultivarem a sua língua
materna, os seus costumes e as suas tradições. Os imigrantes alemães
corresponderam a estes privilégios e a estas vantagens e prosperaram
rapidamente. Sentiam-se felizes, acolhidos e valorizados em sua nova pátria.
50 anos depois, em
1812-13 sob o reinado do Czar Alexandre I, foi feito um segunda chamado ao povo
alemão da Prússia (aqui incluo os meus antepassados, tanto paternos, quanto
maternos) e das Províncias de Posen, Pomerânia e de Mecklenburg, com as mesmas
propostas anteriormente feitas por Katharina II. Com estes imigrantes, na sua
maioria luterana, menonitas, pietistas e católicos, iniciou-se a colonização do
sul da Rússia, nas regiões da Ucrânia e da Criméia. Diz-se que da mesma forma a
emigração se deu por motivos religiosos confessionais.
Oitenta anos depois,
em 1892 (Alexandre III), todas as colônias alemãs foram
"russificadas", isto quer dizer: perderam a isenção de impostos, a
isenção militar e nas escolas, além da língua alemã que vinha sendo
administrada, introduziu-se também a língua russa. Esta adaptação, devido aos
longos anos de vivência em solo russo, foi assimilada sem traumas.
Com o constante
aumento da população, no começo do século 20, o monstro chamado falta de terra
começou a rondar também a Rússia. Assim, em 1905, o governo decidiu colonizar
as vastas estepes da Sibéria. Embora a Sibéria fosse até então conhecida e
temida apenas como região de desterro e de trabalho forçado (nas minas de
carvão) imposto aos infratores da lei, as suas imensas planícies eram favoráveis
à agricultura e à criação de gado. Levas e mais levas de russos e descendentes
de imigrantes alemães de todas as regiões do Wolga, de Wollynien, da Ucrânia e
da Criméia rumaram para o sul da Sibéria, a algumas centenas de km da fronteira
com a China, tendo como centro referencial de comércio a cidade de Slawgorod.
Lá se estabeleceram
em aldeias, não muito distantes umas das outras, construíram as suas igrejas,
as escolas, contrataram professores. Os feriados religiosos eram guardados e
exaustivamente comemorados. Embora morassem em aldeias separadas, os luteranos,
os menonitas, os católicos e os pietistas visitavam-se mutuamente, negociavam
entre si, respeitavam-se e praticavam, pacificamente, a política da boa
vizinhança. As terras não lhes foram doadas pelo governo, compraram-na. Embora
o inverno fosse longo e rigoroso, prosperaram devido às excelentes colheitas de
trigo e as abundantes pastagens para os rebanhos de gado e de ovelhas.
Em 1914 irrompeu a
primeira guerra mundial. A guerra ainda não havia acabada quando, em 1917, a
Rússia mergulhou em uma impiedosa e sangrenta revolução interna. A monarquia
dos Czares foi deposta e assassinada. O comunismo tomou o poder. Com ele, o
medo e o terror alastraram-se por todo território russo. Os comunistas usavam a
bandeira da Revolução Francesa pregando liberdade, igualdade e fraternidade,
prometendo ao povo o paraíso e o céu na terra. Não é de estranhar que também
filhos de descendentes alemães abraçaram esta causa e engrossaram as suas
fileiras. Mas não tardou para se conscientizarem que estas promessas não
passavam de um engodo e de uma grande mentira. Os comunistas declararam guerra
contra a religião e contra o patrimônio. O paraíso prometido tornou-se um
inferno. Profundamente decepcionados, os nossos pais tiveram que aguentar
calados o ódio e a ferrenha perseguição empreendida contra a Igreja. Logo
contra eles, que no passado abandonaram a sua pátria para emigrarem para um
país onde pudessem praticar livremente a sua confissão, a qual, através dos
séculos, cultivou com amor e dedicação, nas igrejas, nas escolas e em suas
famílias, visando transmiti-la inalterada aos seus descendentes. Cheios de
tristeza tiveram que assistir seus conceitos cristãos serem desprezados,
ridicularizados e, como se isso não bastasse, eles próprios, pelo fato de
pertencerem a um credo religioso, serem declarados inimigos do poder.
As igrejas foram
fechadas. Muitas escolas foram arrancadas, e em seu lugar foram construídas
creches. Os pais tiveram que assistir, sem nada poder fazer, aos seus filhos
serem alienados dos princípios cristãos e serem doutrinados no regime
comunista-marxista. Esta situação tornou-se insuportável e, a longo prazo,
insustentável. As suas propriedades foram invadidas, saqueadas e
desapropriadas. De proprietários passaram a operários, para não dizer escravos,
nas granjas coletivas, as assim chamadas colcozes, ou kommunas. A sua autoestima
e o seu orgulho de agricultores livres foi ferido ao extremo. Por isso, hoje,
todo movimento seja ele político, religioso ou social, que tem por objetivo a
invasão e a desapropriação, encontra nos descendentes destes imigrantes uma
grande resistência e um alto e sonoro não. Quem sentiu na própria pele entende
melhor a dor que esta injustiça causa. Somos contra o acúmulo de terra, cuja
finalidade é a especulação, mas entendemos que liberdade tem algo a ver com
propriedade, ou melhor, que as duas coisas andam juntas e são inseparáveis.
Visto deste prisma podemos afirmar, (esta afirmação não é minha, podemos
encontrá-la na revista VEJA, do dia 09 de fevereiro de 2000, página 57):
"O comunismo foi um equívoco ideológico que produziu uma catástrofe
humana", jogando na miséria, material e espiritual, milhões de seres
humanos. Escutando no sábado passado, 29 de julho de 2000, a VOZ das AMÉRICAS,
noticiou-se que o atual Presidente da Rússia, Wladimir Putin, baixou um Decreto
tornando obrigatório o ensino religioso em todas as escolas russas. Temos a
impressão que não apenas a Natureza se vinga, quando o homem dela abusa, mas
também a História.
Mais e mais a vontade
de abandonar a Rússia foi crescendo, e secretamente alastrou-se como uma
epidemia entre os descendentes alemães. Sair deste inferno e desta prisão, na
qual eles se sentiam inseridos. Emigrar! Sim, emigrar. Um mundo de preocupações,
de incertezas, mas também de esperanças encerra-se nesta palavra. Significa
despedida da pátria, da terra, da horta e do quintal, do bezerro no curral; da
velha macieira que o avô ainda havia plantado. É a separação da família, de
parentes e de amigos, para ir ao encontro do desconhecido, colocando em jogo a
sua sobrevivência, mais do que isto, colocando em jogo a sua própria
existência. Conseguiram sair via Moscou aproximadamente 5000 pessoas; milhares
não conseguiram sair e tiveram que voltar para o lugar de origem. Os pais que
resistiam eram presos e levados para os campos de trabalho forçado. Os seus
familiares nunca mais tiveram notícia deles. De Moscou para Riga, a capital da
Letônia, de lá para Hammerstein, na Alemanha, onde ficaram alojados e receberam
documentos alemães; do porto de Hamburg para a Ilha das Flores, no Rio de
Janeiro; do Rio para Porto Alegre, para Santa Bárbara do Sul. De lá, 251
famílias luteranas para Iracema, Mondaí, SC e 84 famílias católicas para
Aguinhas, São Carlos, SC. Muitos conseguiram fugir pela China, onde a fronteira
era mal guarnecida.
Aqui, no meio do
mato, o duro trabalho de começar tudo de novo, com o peito oprimido pela
saudade da pátria, amada como mãe, mas que lhes fora madrasta. Em uma de minhas
viagens de Florianópolis para Iraí, passei por São Carlos e procurei o Sr. Nicolai
Beirith. Através do seu filho Rudolf eu fiquei sabendo que o seu pai Nicolai
reatara a correspondência com o seu irmão que havia ficado na Sibéria. Para ele
dirigi-me solicitando que escrevesse para o seu irmão e perguntasse se o
sobrenome Gutjahr ainda existia na Sibéria. Após as nossas tratativas, ele
perguntou-me para onde iria. Respondi-lhe que iria para Irai, a minha terra
natal. Lá queria ver as laranjeiras e as bergamoteiras nas quais trepava quando
menino para saborear os seus deliciosos frutos! Aquelas “laranja de umbigo”,
iguais, nunca mais encontrei. Enquanto eu ia relatando, o Sr. Beirith desatou a
chorar. Eu não entendi o que se passava. Quando perguntei se lhe pudesse ajudar
em algo, ele fez um sinal com a mão, como quem diz: Espere! Quando a sua emoção
havia passado e ele havia enxugado as suas lágrimas, olhou para mim e disse:
"Tu és uma pessoa feliz, pois tu podes voltar para a tua terra natal e ver
como tudo foi e era, mas eu vou morrer e a mim isto não é permitido".
Naquele momento entendi o que significa ter um torrão natal, no qual se nasceu
e no qual se ensaiou os primeiros passos e para o qual se pode retornar quando
a saudade apertar.
Longe, para sempre,
do restante dos familiares e dos amigos, a dor da saudade comprimia o peito e
cortava a alma. Chorar silenciosamente, no travesseiro ou no canto da cabana,
era a única expressão secretamente permitida. Só restava trabalhar duro, para esquecer
a saudade e construir do nada uma nova pátria. Trocaram as imensas planícies
pelo mato e pelos morros. A neve e o frio de 30 - 40 graus negativos pelo calor
sufocante do verão. As casas aconchegantes pelas cabanas cobertas de taquara e
de folhas de palmeiras, tendo por assoalho o chão batido e por companhia os
mosquitos, as aranhas e as formigas. Porém, satisfeitos! por estarem livres! E
sobreviveram! Não tenho conhecimento que algum deles tivesse enveredado pelo
caminho do crime e da contravenção penal, graças ao seu caráter e aos seus
princípios éticos e morais. Com suor e espírito comunitário, construíram casas,
em mutirão fizeram roças, construíram igrejas e escolas. -- Eu tinha de 9 para
10 anos e frequentava a Escola Evangélica Divino Mestre em Iraí. O Pastor de
então, Manfredo Hasenack, hoje aposentado e morando em São Leopoldo, incumbiu
os alunos para empreenderam uma campanha em favor da Obra Gustavo Adolfo. Eu
cheguei na residência de um destes teuto-russos e ofereci a campanha. O chefe
da família não mostrou muito interesse; eu fiquei sabendo mais tarde que ele
havia economizado os seus trocados para comprar uma carroça nova. Sua esposa,
porém, uma senhora muito ativa e bem quista, disse: "Nós vamos colaborar,
sim, pois, a igreja e a escola a gente sempre deve ajudar. A escola educa e a
igreja mostra o caminho".
Pela fé em Deus, eles
suportaram as adversidades, contribuindo por onde passaram econômica, política,
religiosa e socialmente, legando aos seus descendentes um futuro melhor.
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